O Blog da Biblioteca do QueerIST dá início, com este artigo, a uma série de breves compilações de recursos que pela sua natureza não podem constar no arquivo físico da nossa biblioteca mas que não podem deixar de ser sublinhados. Desta vez, olhamos para um conjunto de peças jornalísticas que nos contam sobre a história de uma pessoa queer portuguesa medicalizada no tempo do Estado Novo.
Aviso de conteúdo queerfóbico, cirurgia não consentida, pseudodiagnóstico/medicalização, nazismo e fascismo
Há muitos anos atrás, nasce um rapaz com um sonho – ser bailarino – e um talento inato que o catapulta a uma carreira internacional de sucesso. Só que este não é o enredo de Billy Elliot, e não se passa nos anos 80. É uma história portuguesa do tempo da ditadura, e a história do primeiro bailarino português a internacionalizar-se. Mas o seu final é bem menos feliz.
Valentim de Barros nasce em 1916, o mais novo de oito irmãos, e cedo quis seguir a sua paixão – dançar. Se essa paixão já era inusitada para alguém criado como rapaz na época, a verdade é que desde pequeno que a sua expressão de género extravasaria qualquer convenção de então.
Havia de crescer com a sua mãe, Ana da Encarnação, por via da sua separação do marido. Ela terá relatado os passatempos de Valentim: “Para os arranjos da casa e trabalhos femininos, não há ninguém como ele. É capaz de fazer os desenhos para o mobiliário e decoração de qualquer casa. Sabe fazer rendas, toalhas de mesa, guardanapos, naperons, colchas de ‘filet’ e bordados.” Ao longo de toda a sua vida, o epíteto de feminino seria uma constante, vindo a ser conhecido por ocasionalmente vestir roupa de convenção feminina.
Aos 14 anos, recebe mentoria por um bailarino que causou alguns desgostos na família. Valentim e o bailarino fechariam-se frequentemente numa sala durante largas horas. Por outro lado, as irmãs suspeitariam que esse bailarino roubava os namorados delas. Mais tarde, a mãe viria a confessar ter ignorado estes sinais.
Valentim continuaria a ter aulas de dança clássica mas sem conhecimento da família, no Teatro D. Maria II com uma mentora alemã conceituada. Mais tarde, relataria dos seus vários romances desta altura:
“Conheci-o em Paço de Arcos. Ensinava-lhe natação e ele ensinava-me boxe e cultura física. Era empregado no Ministério do Interior e gostava muito de andar comigo, dizia que eu tinha um corpo muito elegante. A esposa dele tinha muitos ciúmes meus, mas ele só gostava de andar comigo. Fui amante dele. Nunca tive ninguém de quem gostasse tanto como do G.P., nunca tive dedicação maior. Durou até aos 20, quando fui para a Espanha como bailarino”
Valentim de Barros, Artigo de Persona Grata (ver fontes)
Quando decide definitivamente enveredar pela dança, o pai descobre e não consente. Assim, foge aos 20 anos para Espanha, a fim de se juntar a uma companhia de dança. Depois de capturado na Guerra Civil espanhola, conta ter-se refugiado num convento vestindo-se de freira. Volta a fugir, desta vez da guerra, passando por Génova e Marselha até chegar à Alemanha nazi.
“Fui ao Teatro da Ópera de Berlim e falei com a coreógrafa. Ela viu-me dançar, gostou da minha técnica e da minha expressão.”
Valentim de Barros, Artigo de Persona Grata (ver fontes)
Terá dançado em Estugarda peças como “As Criaturas de Prometeu”, de Beethoven, e “Petrushka”, de Michel Fokine. Seria muito próximo de soldados alemães, um dos quais teria sido seu namorado. Mas algures por esta altura é que a história da sua vida muda drasticamente.
Um ano depois, em 1939, foi deportado para Portugal. “Apesar das várias tentativas feitas no sentido de averiguar dos motivos por que foi expulso da Alemanha o nacional Valentim de Barros nada de concreto se conseguiu apurar, em virtude de o mesmo dar indícios de alienação mental e não responder com suficiente clareza às perguntas que lhe são formuladas.”
O seu exame no Hospital Miguel Bombarda é assim descrito: “Cumprimenta-me à entrada, senta-se quando lhe ordeno. Modos afeminados, melífluos, dengosos, denunciantes da sua inversão sexual. Perfeitamente calmo, humor natural. Respostas adaptadas, longas, circunstanciadas, voz afeminada.” Na ficha clínica consta o seu diagnóstico – Homossexualidade.
Valentim terá permanecido muitos anos internado no manicómio. Já nos anos 60, escreveria numa carta onde detalha alguns dos procedimentos medicalizados – seria injusto chamar-lhes de procedimentos médicos – a que teria sido sujeito:
[…] ido a minha casa a polícia buscar-me de novo para êste hospital onde obedecendo ao rigoroso tratamento e electro-choques na 6ª enfª […]
A polícia foi-me a casa buscar mandada pelo Dr. Fernando Ilharco ao hospital Júlio de Matos [?] de me haverem no Júlio de Matos operado a cabeça […] havendo eu ficado com dois côncavos [marcados] para toda a minha [vida].
Valentim de Barros, Artigo de Persona Grata (ver fontes)
Valentim teria sido submetido a electrochoques e a uma leucotomia forçada.
No caso da leucotomia, semelhante a uma lobotomia, esta só seria indicada para pessoas com certas psicoses, mas essas nunca viriam a constar na sua ficha clínica, apenas o registo de homossexualidade. “Será o doente portador de qualquer psicose? Examinei-o cuidadosamente nesse sentido e cheguei a resultados negativos”, notou o seu médico. Ainda mais, nenhum destes procedimentos viria a mudar a sua orientação sexual: “Se dantes convidava os outros doentes para práticas homossexuais e se metia na cama com eles, depois da leucotomia faz precisamente a mesma coisa.”
Desde então, continuaria a passar os seus dias no hospital, “a fazer tricot, rodeado de santos, pássaros e flores, a falar fluente e corretamente alemão, francês e espanhol.”
“Fazia bonecas vestidas a rigor com todos os detalhes, até roupa interior, tinha pinturas satíricas… Temos também algumas gravações dele a declamar poemas com uma voz efeminada. Era um artista que nunca foi reconhecido como tal”
Sandro Resende – Artigo do Expresso (ver fontes)
O fim da ditadura permitira que casos como o de Valentim pudessem ter alta, mas “Ninguém o queria. Lembro-me da enfermeira-chefe dizer que a esmagadora maioria dos doentes era abandonada pelas famílias quando tinham alta.” Pelo menos, terá recuperado a liberdade de sair do hospital para passear por uma Lisboa que já não conhece e encomendar os seus tecidos favoritos.
Apesar da sua história trágica, Valentim de Barros está longe de escapar a repreensão. Sabemos que muitos dos seus relatos seriam ligeiramente imaginativos, cristalizados pelo trauma de uma juventude roubada. No entanto, a sua passagem pela Alemanha nazi e os seus enlaces com os soldados iriam, até ao fim da sua vida, colorir o seu discurso de um saudosismo nazi que não escapa à nossa condenação. No fim de contas, o fascismo não terá feito favores nem a ele, nem a muitas outras pessoas queer na Alemanha nazi e em Portugal.
Numa entrevista, a repórter Maria João Avillez terá escrito:
Acabaria por falecer nesse hospital.
Relembrando Valentim
Adaptada a partir da sua história, mas num contexto diferente, surge uma peça de teatro intitulada ‘Mário‘, recentemente em cena no São Jorge, em Lisboa. “Esta não é a história do Valentim – foi apenas a inspiração. Esgotámos todas as noites e, ao contrário do que é comum no teatro português, conseguimos fazer dinheiro. Foi uma surpresa muito grande. Não havia noite em que não tivéssemos pessoas à nossa espera no final do espectáculo, algumas a soluçar e emocionadas.”
Referências
Conhece mais sobre esta história nas fontes originais que deixamos a seguir. Como parte do nosso projecto de arquivo, estes endereços serão submetidos ao Internet Archive para preservação futura, no caso de deixarem de estar disponíveis no seu endereço original.
Artigo de Persona Grata (Bruno Horta):
https://personagratablog.wordpress.com/valentim-de-barros-o-bailarino-a-quem-roubaram-a-vida/
Artigo do Sapo (Bruno Horta) – Versão encurtada e em partes do artigo original publicado em Persona Non Grata na fonte acima
Parte I: https://lifestyle.sapo.pt/vida-e-carreira/noticias-vida-e-carreira/artigos/valentim-de-barros-o-bailarino-a-quem-roubaram-a-vida
Parte II: https://lifestyle.sapo.pt/vida-e-carreira/noticias-vida-e-carreira/artigos/parte-ii-valentim-de-barros-o-bailarino-a-quem-roubaram-a-vida
Parte III: https://lifestyle.sapo.pt/vida-e-carreira/noticias-vida-e-carreira/artigos/parte-iii-valentim-de-barros-o-bailarino-a-quem-roubaram-a-vida
Parte IV: https://lifestyle.sapo.pt/vida-e-carreira/noticias-vida-e-carreira/artigos/parte-iv-valentim-de-barros-o-bailarino-a-quem-roubaram-a-vida-2
Parte V: https://lifestyle.sapo.pt/vida-e-carreira/noticias-vida-e-carreira/artigos/parte-v-valentim-de-barros-o-bailarino-a-quem-roubaram-a-vida
Hetero Q.B. (Paula Roush)
https://heteroqb.wordpress.com/texts/in-the-grip-of-the-panopticon/
Artigo do Expresso (Marta Gonçalves):
https://expresso.pt/sociedade/2020-01-03-Ainda-e-melhor-para-ele-nao-saber-que-a-culpa-e-nossa–A-historia-terrivel-de-Valentim-de-Barros
Artigo do Público (São José de Almeida):
https://www.publico.pt/2009/07/17/sociedade/noticia/o-estado-novo-dizia-que-nao-havia-homossexuais-mas-perseguiaos-1392257
Vítor Albuquerque Freire, Panóptico, vanguardista e ignorado – O Pavilhão de Segurança do Hospital Miguel Bombarda, Lisboa, 2009
Há vários artigos sobre VB no Queerquivo que tenho pena que não apareçam aqui….